O cenário da violência doméstica no Brasil revela uma tragédia social de dimensões estruturais, cujos impactos ultrapassam os muros das residências e se projetam sobre a formação de toda uma geração. Uma pesquisa nacional de abrangência inédita aponta que cerca de 3,7 milhões de mulheres sofreram algum tipo de violência nos últimos doze meses. Mas é o dado sobre a presença de testemunhas que expõe, de forma contundente, a profundidade do problema: 71% das agressões ocorreram diante de outras pessoas e, em 70% dessas situações, havia uma criança presente.
Isso significa que aproximadamente 1,94 milhão de agressões foram presenciadas por menores, segundo o Mapa Nacional da Violência de Gênero, mantido pelo Observatório da Mulher contra a Violência (OMV) do Senado Federal, Instituto Natura e Gênero e Número. A estatística acende um alerta sobre os danos psicológicos, emocionais e sociais causados a crianças que crescem em ambientes violentos, reforçando o entendimento de que a violência contra a mulher não é um episódio isolado, mas um fenômeno que se irradia por todo o tecido social.
Ciclo de agressão e cronicidade
A persistência do problema também aparece de forma clara no levantamento. Para 58% das entrevistadas, a violência ocorre há mais de um ano, um ciclo difícil de romper, especialmente quando fatores como dependência econômica, medo, isolamento e a falta de uma rede de apoio estruturada impedem que a vítima consiga deixar o agressor.
Especialistas alertam que ciclos prolongados aumentam o risco de agravamento das agressões e aprofundam os efeitos nocivos sobre crianças que testemunham repetidamente esses episódios, normalizando comportamentos abusivos e reproduzindo padrões que podem se manifestar na vida adulta.
A busca por ajuda ainda acontece no âmbito privado
Mesmo diante da gravidade do cenário, a procura por apoio formal continua limitada. Após sofrer violência, a maioria das vítimas recorreu primeiramente a espaços privados: família (58%), igreja (53%) e amigos (52%). Embora esses círculos representam um acolhimento imediato, nem sempre conseguem oferecer orientação adequada sobre como acessar os mecanismos formais de proteção.
A antropóloga Beatriz Accioly, do Instituto Natura, destaca que lideranças religiosas e familiares desempenham papel essencial no enfrentamento da violência, mas precisam estar preparadas para direcionar corretamente as vítimas aos serviços oficiais, como delegacias especializadas, serviços de denúncia e abrigos de proteção.
Apesar disso, apenas 28% das mulheres buscaram atendimento nas Delegacias da Mulher, e somente 11% acionaram o Ligue 180, principal canal nacional de orientação e denúncia.
Religião e família: redes de apoio que precisam se fortalecer
O estudo ainda revela que a adesão ao amparo religioso é maior entre mulheres evangélicas (70%), enquanto católicas tendem a recorrer mais aos familiares (59%). Esses dados reforçam a amplitude e a capilaridade das redes privadas de apoio fundamentais, mas insuficientes quando atuam isoladamente. Especialistas defendem que o fortalecimento das políticas públicas, integrado a essas redes, é indispensável para prevenir, acolher e proteger as vítimas.
Uma urgência de saúde pública e desenvolvimento social
Os números evidenciam que enfrentar a violência doméstica não é apenas uma pauta de segurança, mas também de saúde pública, educação, desenvolvimento social e proteção da infância. Crianças que crescem em ambientes violentos têm maior probabilidade de desenvolver transtornos emocionais, dificuldades escolares e comportamentos agressivos ou de submissão.
Assim, o combate à violência contra a mulher exige uma abordagem sistêmica, capaz de romper ciclos intergeracionais e garantir que o Brasil avance rumo a uma sociedade mais justa, segura e equitativa. Cada caso ignorado representa não apenas uma mulher ferida, mas uma infância interrompida e um futuro comprometido.





